Passados quatro anos, reúne-se de novo a nossa casa - a Universidade Federal do Rio de Janeiro - em sessão solene de seu Conselho Universitário, para nova investidura de sua vice-reitora e de seu reitor.
É, em aparência, uma cerimônia em tudo igual à que realizamos em 2003, no prédio da Avenida Rui Barbosa 762, prédio histórico, sede que foi do Internato da Escola de Enfermagem Anna Nery e da Casa do Estudante do Brasil.Em sua essência, no entanto, é uma cerimônia bem diferente. Antes de mais nada, porque o tempo passou, e todos nós pagamos tributo ao tempo. E, com o tempo, passam também muitas de nossas ilusões e esperanças, frustradas nos duros embates da realidade.
É tempo de balanço.
No discurso de posse, pronunciado em 18 de julho de 2003, assumi três compromissos perante nossa Universidade:O primeiro, de ordem pessoal, foi o compromisso de permanecer fiel aos mesmos ideais pelos quais lutara durante toda a minha vida: a democracia, a soberania nacional, o socialismo. Pedi-lhes na ocasião que não esquecessem nada do que dissera ou escrevera.
Passados quatro anos, reafirmo meu compromisso e declaro que continuo na mesma trincheira, lutando as mesmas lutas.O segundo era um compromisso da cidadania: dar continuidadeà luta pela transformação social do país. Esse compromisso se expressava em três pontos:
1) a luta pela redefinição dos fundamentos da política econômica;
2) a luta pela recuperação dos programas e dos mecanismos universais de política social - a escola pública, a saúde pública, a previdência social pública - únicos instrumentos eficazes para a redução das desigualdades e para o combate efetivo à miséria absoluta existente no país; acrescentei na ocasião que o sistema de proteção social não podia estar submetido aos ditames do superávit fiscal.
3) a luta pela reconstrução democrática do Estado brasileiro, dotando-o das alavancas indispensáveis à intervenção na vida social - luta essa que implicava a revalorização do serviço público e dos trabalhadores do setor público, instrumento e sujeito que são da realização do projeto nacional.Passados quatro anos, reafirmo meu compromisso, mas não tenho como deixar de reconhecer que continuamos longe desses objetivos.
Na verdade, a política econômica não trilhou caminhos diferenciados que pudessem garantir uma retomada firme do crescimento com distribuição de renda. Ao contrário, o
discurso oficial vem repetindo a falsa idéia de que não existem alternativas ao modelo atual e que a manutenção de elevados patamares de superávit fiscal é a única forma de se manter sob controle a inflação.Nem uma coisa nem outra: o controle da inflação, ao contrário do que se apregoa, não é conseqüência do superávit primário, mas da combinação do câmbio e dos juros; e existem outras formas de controle da inflação, menos penosas para os trabalhadores e para o povo brasileiro.O elevado patamar do superávit primário, que esteriliza centenas de bilhões de reais a cada ano, é importante unicamente para os rentistas, pois serve como lastro e garantia para suas aplicações em títulos da dívida pública.
E a perversa combinação de câmbio e juros desestrutura nosso sistema produtivo, tornando-o mais vulnerável e menos capaz de confrontar-se com a forte concorrência
internacional, estimulada pela descontrolada abertura financeira e comercial que não foi revertida.As políticas de câmbio e juros continuam inibindo o investimento produtivo e impedindo que qualquer projeto de desenvolvimento possa ter sustentação a médio e longo prazo.
E exigem, além disso, a rolagem das dívidas em patamares que impedem a expansão do gasto público e resultam na impotência quase absoluta do aparelho do Estado para prover com um mínimo de eficiência os serviços públicos básicos sob sua responsabilidade, tanto na área social como na de infraestrutura.
Se na política econômica não avançamos, igualmente não houve progresso na política social. Os instrumentos de políticas públicas não recuperaram sua universalidade; ao contrário, o caminho adotado foi o da ampliação infinita dos programas de compensação social, que podem até aliviar a fome e reduzir topicamente a miséria, mas que não resolvem estruturalmente o problema da desigualdade.Mais do que isso, volta à ordem-do-dia a reforma da previdência e mais uma vez os direitos dos trabalhadores ficam sob ameaça. Ao constatar esses fatos, não o faço com pessimismo nem com desesperança. Se parte do otimismo que era possível alimentar quatro anos atrás se dissipou, a disposição para a luta permanece a mesma. E devemos travá-la em todos os campos; o Estado e as políticas públicas são, eles também, um campo da luta política. Renunciar a ele poderia constituir-se em erro tão grave quanto o de capitular face às vicissitudes do momento.O terceiro compromisso era com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, seus estudantes, seus servidores técnicoadministrativos, seus professores - compromisso esse que pode ser resumido na frase que pronunciei na primeira reunião do Conselho Universitário de que participei como reitor da UFRJ e que repeti na cerimônia da primeira posse:
“Gostaria que a minha chegada à reitoria, junto com os companheiros que ora me acompanham, sinalizasse uma nova era para a Universidade Federal do Rio de Janeiro e que as diferenças passadas estejam definitivamente encerradas. Tenho a esperança de que estes próximos anos serão um período de paz e reconstrução em nossa Universidade”.Creio que, em relação a esse ponto, podemos constatar com orgulho que avançamos bastante. A Universidade Federal do Rio de Janeiro está pacificada - o que significa tão somente que temos um clima favorável à explicitação de nossas diferenças e divergências e que podemos confrontá-las em um ambiente adequado ao avanço e ao crescimento de nossas atividades.
Orgulhamo-nos, mas reconhecemos que essa não é uma realização da reitoria - é uma conquista de todos nós, uma conquista de nossa Universidade. E se algum papel coube à reitoria, devemos a agradecer a todos os que conosco trabalharam nesses quatro anos. Citarei - e a eles agradecerei - apenas os que não estarão na administração central da Universidade no próximo mandato: Professor Joel Teodósio, Professor Marco Antonio França Faria, Professor José Roberto Meyer Fernandes, Professor José Luiz Fontes Monteiro, Professor Carlos Tannus.Se é tempo de balanço, se é tempo de reafirmar velhos compromissos, também é tempo de anunciar novos embates e perspectivas. E é bom destacar que, em meio às críticas que faço ao Governo e das quais não abro mão, seria não apenas uma inverdade mas principalmente um erro não reconhecer o muito que avançamos, nesses quatro anos, no campo da educação superior.A universidade pública - em especial as federais - recuperou protagonismo, seus orçamentos foram parcialmente recuperados, a interlocução das IFES com o Ministério da Educação foi a melhor em décadas e abriu-se espaço para a discussão de uma verdadeira reforma universitária - não apenas uma alteração de seu marco regulatório, nem uma imposição de mudança em sua estrutura organizativa vinda de cima para baixo, mas uma reforma substantiva da matéria com que trabalhamos, o ensino, a pesquisa e a extensão, e da forma como a trabalhamos.Se ainda estamos distantes de nossos objetivos, não podemos desconhecer os êxitos alcançados - êxitos que não podem ser considerados dádivas, mas conquistas da sociedade brasileira, que exige uma educação superior adequada ao momento porquê passamos. A universidade, como instituição, não está em discussão apenas no Brasil. Ela o está no mundo todo, como decorrência de duas ordens de problemas, ambas sem precedente na história da humanidade e que a impactam fortemente.
A primeira tem a ver com a aceleração do desenvolvimento científico e tecnológico e com a forma como a instituição universitária deve-se estruturar para dar conta desse desafio. Ultrapassamos a época da multidisciplinaridade - atributo do objeto que é visitado simultânea mas separadamente por vários enfoques disciplinares. Ultrapassamos também a época da interdisciplinaridade - atributo do sujeito, que permitia surpreender o objeto na fronteira entre vários enfoques disciplinares individualizados.No primeiro caso, tratava-se de uma justaposição de conhecimentos; no segundo, tratava-se, antes de tudo, da transposição e utilização de métodos próprios a uma disciplina em outra.A época em que vivemos é a o do conhecimento transdisciplinar, que significa uma nova relação entre os conhecimentos. Não apenas o objeto deve transitar de uma disciplina para outra, mas o próprio sujeito deve qualificar-se para a utilização de conhecimentos que transcendem as fronteiras disciplinares. A transdisciplinaridade não elimina nem a disciplina nem os enfoques multi e interdisciplinares, mas os transforma, subordina e reorganiza.A segunda ordem de problemas tem a ver com a expansão sem precedentes que a educação superior alcança em todo o mundo, principalmente mas não só, nos países do centro capitalista. Em vários países da América, da Europa e da Ásia, o percentual de jovens, com idade entre 18 e 24 anos, que cursam instituições de educação superior, já ultrapassou a casa dos 60 por cento. Ainda há poucos dias, o Ministro da Educação Superior de Cuba, Juan Vela Valdés, declarou que seu país contará em 2009 com um milhão de pessoas graduadas por suas universidades.Tornando-se um direito universal, a que todos podem ter acesso, a Universidade já não pode pensar-se como um mecanismo de produção ou reprodução de elites.
Se essa discussão ocorre em todos os países, não poderia ser diferente no Brasil. Aqui, contudo, o impacto desses processos se dá em uma estrutura de educação superior e em um sistema universitário que se caracterizam por ser tardio, carente de autonomia, precarizado pela insuficiência de recursos, desarticulado do sistema produtivo, voltado quase que exclusivamente para a formação profissional, fragmentado e elitista, à medida em que apenas 10% dos jovens com idade entre 18 e 24 anos têm acesso à educação superior. Na verdade, todas essas características não passam de faces de um mesmo poliedro.
A Universidade Federal do Rio de Janeiro não foge à regra; ao contrário, talvez seja seu mais representativo e exitoso exemplo.O momento por que passa o país atualmente encerra graves dificuldades e contradições - disse-o há pouco. Mesmo assim, o acúmulo de iniciativas por parte do Ministério da Educação, no campo da educação superior, cria uma oportunidade sem
precedentes para que a UFRJ possa avaliar-se, profunda e radicalmente, e propor, sem capitulação, mas também sem sectarismo, as transformações que lhe são exigidas.Nesse momento, em que nos apresentamos diante de nossa Universidade - Professora Sylvia e eu - e assumimos a investidura para mais um mandato à frente da reitoria, declaro que pretendo empregar toda minha energia para que a Universidade Federal do Rio de Janeiro possa superar o quadro de limitações que a restringem - algumas impostas, outras criadas ao longo de sua própria história - e responder ao desafio colocado pela sociedade contemporânea com um projeto de transformação, capaz de prepará-la para um futuro marcado pela transdisciplinaridade e pela universalização da educação superior.As diretrizes para essa ação são as que delineamos em nossa Proposta de Plano Qüinqüenal de Desenvolvimento para a UFRJ, amplamente discutida em todas as unidades da UFRJ, ao longo do ano de 2006.
São também as que estaremos apresentando nos próximos dias, por determinação do Conselho Universitário, como parte do anteprojeto de Programa de Reestruturação e Expansão da UFRJ.Tais diretrizes podem ser resumidas nos seguintes eixos irradiadores:
• Expansão e reestruturação, com garantia de qualificação crescente, das atividades de ensino de graduação e de pós-graduação, pesquisa e extensão, ampliando vagas, permitindo a difusão de uma cultura humanística e crítica, criando novas alternativas e trajetórias de formação profissional e buscando novos paradigmas acadêmicos de educação superior.
• Redefinição dos mecanismos de acesso à Universidade, alternativos e complementares às provas vestibulares, que permita o aproveitamento em nossos cursos de jovens hoje excluídos por razões de renda e o avanço em direção à universalização do ensino superior.
• Redefinição da estrutura de organização e de administração acadêmica, para tornar a UFRJ ainda mais comprometida com o estágio atual e futuro da evolução do
conhecimento e da dinâmica de gestão desse conhecimento.
• Reordenamento espacial das unidades acadêmicas, compatível com o conjunto de objetivos identificados acima e adequado à indução das transformações planejadas.
O Programa que estaremos apresentando tem a marca indelével da ousadia e só poderá completar-se com a reunião de todas as unidades acadêmicas em um mesmo espaço geográfico. Mesmo em um mundo em que o conhecimento circula em redes virtuais e nos coloca instantaneamente em contato com tudo o que se passa em qualquer ponto do planeta, a convivência é indispensável para aproximar pessoas, eliminar barreiras e derrubar muros, criando a matéria-prima indispensável a uma verdadeira cultura universitária.Por isso, estaremos defendendo a retomada do projeto original de implantação da UFRJ no seu campus da Ilha da Cidade Universitária.O término das obras da Cidade Universitária permitirá constituir aqui o locus adequado para a transformação da UFRJ em uma universidade aberta, democrática, de qualidade e acessível a todas as camadas da população.
O término das obras da Cidade Universitária terá, ademais, um significado, um impacto e uma importância que irão muito além dos pontos aqui tratados. A realização de um conjunto de investimentos da proporção do que temos em mente terá efeitos positivos sobre o emprego e a renda na região; o aumento do fluxo de estudantes, servidores técnico-administrativos e professores ampliará o papel da Ilha na integração entre várias áreas da cidade; a proximidade com a Baixada Fluminense - área das mais densamente povoadas do país e que não possui nenhuma universidade pública - nos permitirá suprir essa carência, ampliando os vetores de integração e contribuindo para diluir as fronteiras da “cidade partida”.O Programa de Reestruturação e Expansão da UFRJ, que estaremos divulgando nos próximos dias, será não apenas a nossa resposta aos desafios que a sociedade nos coloca. Será um projeto do e para o Rio de Janeiro, capaz de articular em seu apoio todas as forças vivas da Cidade e do Estado.Professora Iracema Teixeira, minha mãe, cuja presença nessa cerimônia é fonte de incontrolável emoção.
Professor Nelson Maculan, ex-reitor da UFRJ.
Professor Alexandre Pinto Cardoso, ex-reitor da UFRJ.
Professor Paulo Alcântara Gomes, ex-reitor da UFRJ.
Professor Sérgio Fracalanza, ex-reitor da UFRJ.
Professora Anita Macedo, aqui representando o professor Horácio Macedo, ex-reitor da UFRJ.
Senhora Vice-reitora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Senhores pró-reitores e demais membros da administração central da UFRJ.
Senhores Decanos e senhores diretores de unidade.
Senhores dirigentes das entidades de representação de nossa Universidade.
Senhores professores eméritos aqui presentes.
Professor Raymundo de Oliveira, Presidente da Fundação Universitária José Bonifácio.
Dr. Carlos Tadeu, Diretor-executivo do CENPES.
Meus companheiros de todas as lutas, aqui presentes - em especial os companheiros Milton Temer e Sergio Andréa.
Senhores professores, servidores técnico-administrativos e estudantes.
Minhas amigas e meus amigos.
Minhas senhoras e meus senhores.
Apresento-me diante de vocês com a consciência de minhas limitações e dos obstáculos que teremos pela frente.
“Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”, disse Carlos Drummond de Andrade, em A Rosa do Povo. E a vontade de transformá-lo, gostaria de acrecentar.
Juntos, tenho a certeza que o faremos.
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